terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O brinde



Ajeitava o nó da gravata quando ouviu a voz da mulher o chamando. O ritual sempre se repetia: a grande festa, os convidados, os aplausos, as notas nas colunas sociais do dia seguinte... Pensou na vida abastada que tinha e um sorriso discreto brotou nos seus lábios. Sabia que era um homem de sorte. Tinha os melhores carros, a melhor casa, a melhor família... Tinha os melhores amigos e gozava de grande prestígio na sociedade.

A vida era boa.

Desceu as escadas e a salva de palmas ressoou no amplo salão. Pegou suavemente na mão da esposa e conduziu os convidados para a sala de jantar. Dirigiu-se ao extremo da mesa, segurou a taça de vinho e preparou o  seu melhor sorriso. Estavam ali amigos, conhecidos, sócios, pessoas importantes e queridas. O anfitrião encarou cada um dos presentes. Todos aguardavam o discurso ansiosamente.

Percebera que não.

Sentou-se e não proferiu uma única palavra. Os convidados se entreolharam, confusos. A mulher apertou a mão dele, esperando alguma resposta. Ele apenas levou o vinho aos lábios e esperou. A vaia dos convivas não tardou. Alguns vociferaram insultos, enquanto outros apenas levantaram-se e dirigiram-se à saída, ultrajados. O gosto rascante do vinho amplificava o som do desgosto que pairava no ar. A esposa do anfitrião não conseguiu conter as lágrimas e foi-se embora, aos soluços. Em pouco tempo, estava completamente sozinho.

Carpe Diem.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Inevitável



Pra Jéssica.

Evitar...

Um dos verbos que mais utilizamos em nossas vidas. Sim, evitamos falar verdades porque elas magoarão os outros. Evitamos ser quem somos porque é incômodo lidar com o incomum. Evitamos sentir, pois emoções são coisas perigosas e devem ser guardadas a sete chaves. Evitamos tudo e tudo nos evita. Mas sentíamos que éramos diferentes! Não evitávamos nada e nós não nos evitávamos... Até tentarmos evitar o verbo ir, mas não há como negar o presente:

- Você vai.

Comecei a perceber que não éramos tão diferentes assim. Eu não era, pelo menos. Eu sempre evitei o suspense, pois bem sei que você prefere fantasia ao terror. Eu evitei a timidez, pois encarar a verdade de frente sempre é libertador. Eu evitei a mesmice, pois o que eles viram como mudança, eu vi como melhora. E hoje também evito a saudade, pois ela é definida por algo do passado que não temos por perto e eu não posso sentir saudade de alguém que sempre estará aqui...

- E o amor?

Perdoe-me. 
Esse eu não pude evitar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Retrospecto



Ao futuro.

Começar sempre é o mais difícil. Você faz suas listas, estende suas preces, fecha os olhos e torce pelo melhor. Sem esperar. Há sempre a pressa em manter-se ágil. Gostamos da ação, do movimento, das cores fortes, da celebração intensa. Nessa intensidade de viver em movimento, não sentimos que o tempo brinca conosco. Tudo é uma grande diversão. Não há tempo para admirar o tempo.

Ledo engano.

Pensamos que levamos a vida. Na maioria das vezes, ela nos carrega por aí. Como o vento leva a poeira pra longe. E o tempo, oportuno, nos lembra que há tempo para estar em movimento, mas também há tempo para esperar. E a espera nos aflige, pois é lenta, preguiçosa e nos resta pouquíssimas escolhas diante dela... Diante de nossas súplicas, se mostra inexorável... O que nos resta? Resignação?!

Há tempos que não.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Tempo perdido

Tudo.
Brinque.
Sonhe.
Estude.
Estude mais.
Não perca tempo com brincadeiras.
Estude mais um pouco.
Escolha um curso.
Não perca tempo com sonhos.
Estude um pouco mais.
Tenha um emprego.
Não perca tempo com brincadeiras.
Trabalhe mais.
Consuma.
Não perca tempo com sonhos.
Pare de trabalhar.
Descanse.
Não perca tempo com brincadeiras.
Descanse mais.
Fim de tempo.
Nada.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O fim



O abraço se desfez e eu fui embora sem olhar para trás. Não testemunhei o que aconteceu com eles. Foram felizes? Tiveram filhos? Envelheceram? Espero que sim, mas não posso afirmar. Nunca mais ouvi falar deles. Guardei-os em uma gaveta e me preocupei com as contas, com os ofícios, com os artigos... Com a vida? A verdade é que eu esqueci deles e vejo agora que a história está sem final. Talvez seja melhor deixar assim mesmo. Sem fim. Sem ponto. Sem saber.

Não dá. Há o peso de dar-lhes um final. 
E decido que é o final que nunca terei.

sábado, 9 de novembro de 2013

Antes do Fim (II)




Aquele abraço o transportou para um outro lugar. Estava em outra casa, abraçando outra pessoa, mas o sentimento era o mesmo. Ele era criança e sua mãe acariciava seu cabelo. Não lembrava o motivo - havia caído no quintal ou perdera o brinquedo que tanto gostava? -, mas o detalhe não importava. Lembrou-se apenas do amor que sentia e do carinho que havia por trás de cada ato. Pequenos detalhes que pareciam eternos...

Pareciam...

Uma ida ao hospital e a mãe não estava mais ali. Estava sozinho no mundo. O pai tornara-se a sombra do que fora um dia. O seu olhar carregava amargura e rancor. Dizia ao filho que o amava, mas seus olhos o traíam. Castigava-se, mas não conseguia evitar a raiva que sentia ao ver a esposa amada no filho. Não havia mais carinho, amor, casa ou abraço.

O filho cresceu, tornou-se homem, se casou. Construiu sua própria casa. Poderiam haver abraços infindáveis. Aos poucos, voltou para aquela casa, para aquele carinho, para aquele amor... 

- Para o abraço dela.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Antes do Fim (I)



- Bom dia.

Ela retribuiu o cumprimento. Ele a envolveu em um abraço e sentiu o perfume dela. O cheiro suave invadiu suas narinas e ele se sentiu feliz. Sabia que era por pouco tempo, sua tristeza habitual logo voltaria e ele seria um intruso naquela casa. Não sabia quanto tempo tinha, mas sabia que isso aconteceria. 

Pronto. Já estava triste novamente.

Essa tristeza só era diminuída na presença da alegria dela. Quando a conheceu, se apaixonou pelo calor do seus sorriso, pelos pequenos gestos de carinho, pela doce melodia saída de sua voz. Sentia-se imensamente feliz quando estava com ela e decidiu que nunca ficaria longe dela. O abraço ficou mais apertado. O abraço do náufrago em sua tábua de salvação. E ficou ali, imerso nos próprios pensamentos, desejando que aquilo nunca acabasse.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A água fria corre sobre a sua cabeça. Ela sente o peso da água e, calada, aceita o castigo. O corpo reclama, mas a mente não se dobra. Gostaria de pensar em milhões de coisas, mas nada vem a mente. Por sinal, o nada é a única coisa que ocupa sua mente. Acostumou-se a ouvir que nada era, então nada se tornou. Disseram que ela nada poderia ter, então nada tinha.

Eu queria dizer a ela que tudo vai mudar. Que ela não precisa se torturar, que ela será alguém. Eu gostaria de vê-la crescer e sair dali, abandonando aquele estado apático. Eu a ajudaria a fazer novos amigos, a tomar novos ares, a encontrar prazer no mundo. Eu queria dizer a ela que tudo isso vai passar.

- Mas não vai.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Recado



Eu não quero que me escrevas
- Cartas mostram intensidade...
Não quero ver tua caligrafia
Nem esperar a visita do carteiro.

Eu não quero que me escrevas 
- Cartas revelam sentimentos...
Não quero ver teus devaneios
Nem decifrar a tua complexa escrita.

Eu não quero que me escrevas
- Cartas são tão pessoais...
Guarda-as no fundo da alma
E amarra-as com um laço de desapego.

E mesmo dizendo que não quero tuas cartas
Insistes ainda em me escrever?
Dou-me por vencido e aceito teu sorriso
Como o mais belo e sincero recado.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Receita

Experimenta escrever o que desejar sem se importar com forma.
Experimenta encarar a tela branca por um instante mais longo.
Experimenta dizer o que pensa.
Experimenta arriscar.
Experimenta errar.
Experimentou?

Agora apaga.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Reforma

Hoje recebi uma notícia boa.

Sobreviver a esta semana era a minha primeira meta. 
Fracassei.
Quebraram paredes, cerâmicas, discursos, vontades, esperanças...

Esquece.
Hoje compensou todos os meus fracassos.

sábado, 6 de julho de 2013

Prece para o orgulho



Nosso Pai,
Estais no céu?
Em vão, santificamos o vosso nome.
Venha a nós o vosso reino, sendo feita a nossa vontade.
Pois vislumbramos da terra o grandioso céu.
O pão amargo de cada dia nos dai hoje.
Perdoai as nossas transgressões, mas não espereis o nosso perdão.
Como deixastes que nós caíssemos em tentação?
 Livrai-nos do mal!
[Porque teu é o desespero, a dor, e a angústia, para sempre...]
Amém.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Nos livra do mal?



Ignoraste aquela voz
Sem temer o futuro
Estás agora diante dele
E não sabes o que fazer.

As tuas lágrimas insinceras
Teimam em cair dos olhos
As tuas mãos cheias de culpa
Oferecem dor e desonra.

Ainda olhas para o mar de gente?
Sabes que não haverá compaixão
Não sou divino, me alimentaste
Aquieta-te e colhe o que plantaste.

Do alto de tua arrogância
Não previste tua queda iminente
Sem olhar pro céu, apenas pro chão...
A fina ironia do amém.

Não espereis o nosso perdão



Suja tuas mãos...
Aperta com força...
Ouça o estalo...
Solta após o som...

Abre os olhos...
Enxerga tua queda...
Vai até a rua...
Sobe ao mais alto...

Espera o momento...
Reflete no tempo...
Apela ao orgulho...
- Esperas resposta?

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Perdoai as nossas transgressões



Uma mão estendida
Em forma de súplica
Não garante perdão

Mas um olhar vazio
E um sorriso dissimulado
Geram coisa pior

Uma mão levantada
Um gesto impensado?
Reina o terror

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Não nos dê o pão de cada dia



Insatisfeito, querer mais é seu motivo
Sua vida é simples ganância
Os bens de uma vida confortável
Nada mais quer.

A lição tão desprezada por ele
Tornar-se-á fina ironia
Viver de forma despreocupada
É tudo o que quer.

Volta para casa, vira a chave na porta
Um calafrio percorre a espinha
Pois ouve o som de passos abafados
O inesperado quebra o querer.

A imagem tão nítida de traição:
- Por acaso, tudo não tinha?
Logo sente o gosto amargo do pão
E entende o poder de não ver.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Da terra, visão dos céus



Passo perfeito, salto magnífico
Os céus contemplam sua dança
Tudo se encaminha para um final esplêndido
Por que não é?

Não há mais ar, não há mais fôlego
O sangue logo enche os seus pulmões
Em vão, as mãos buscam conforto
Por que não encontram?

Teme o fim, não fecha os olhos
- Melhor seria se tivesse fechado!
Percebe, então, em sua agonia
Um olhar altivo, vindo de cima

Sabe que o inevitável fim se aproxima
E, num último ato, abraça a terra
Não encara o olhar, sem esperança
Pois sabe que, em breve, estará ali.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Vossa vontade, nosso reino



Proclama o divino:
"Os arrogantes caem!"
Ela nem esboça reação
Não entende o verbo.

"O céu é um trono
E quem nele senta é solitário"
Ela nem tem mais tempo
Para entender tal segredo.

"O tempo é tão curto
Mas o reino é vosso..."
Ele nem sabe o que esperar
Apenas contempla.

O seu olhar se enche
Da mais profunda soberba
Ele nem escuta os arautos
Que predizem sua queda.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Santificado, nome vão


O que ela insiste em encarar, ele insiste em esconder...

Ele se destaca na multidão
Não consegue compreender os motivos dela
Esquece da prece, há tempos não faz
Não quer entender

O medo enche logo o seu coração
Arrisca um suspiro diante da que era tão bela
A cor foge do rosto, já respira mal
Afasta-se de ser

Ele usa aquele nome em vão
Por que, dentre todos, aos céus apela?
Vai embora, depressa, não olha pra trás
Só quer esquecer

Ele agora só anda e olha pro chão
O céu funciona como uma remota capela
O desespero constrói a distância abissal
Começa a morrer

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Estais no céu?



Não consegue mais olhar para as nuvens
Os olhos agora estão fixos no chão.
Tão distante, ouve-se um som amargo:
"Não olhe, não olhe..."

Cansou de esperar dos céus um socorro
Deu ouvidos à voz desesperada dos aflitos
Tão perto, o vento parece escrever:
"Não ouça, não ouça..."

Sem firmeza, parece andar sobre as nuvens
Vacila, mas executa seus passos no ar
Atinge o chão com espanto profundo
E tinge de rubro o chão tão cinzento.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Pai Nosso


Junta as mãos, deitada no chão
Dirige o seu olhar ao branco forro
Explora suas dores com doce afinco
Pois quer transformar o futuro em horas.

Recita, sem pressa, a velha oração
Não sente que não existe conforto
O tempo, no entanto, não atende os caprichos
De alguém que procura livrar-se do agora.

Ouve-se o som de um longo murmúrio
Repete o rito, mas perde o ritmo
O som diluído se traduz em desgosto.

Os lábios se fecham em um breve sussurro
- Percebe agora a dor de ter crido?
E mergulha sua prece no fim silencioso.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Realidade



Parou diante daquele sorriso. Atitude tola, mas não conseguiu evitar o ridículo. Achou irônico que um simples sorriso desarmasse seu impulso de voltar ao desconforto do quarto. Percebeu que não havia mais sorriso, pois a moça já havia baixado o olhar e voltado à leitura que fazia. No entanto, a sensação ficara. Sentiu-se extremamente tolo. E limitado.

E pensou.

E teve raiva do seu excesso de análise.

- E se eu apenas fosse de uma vez?

Percebeu que a sensação era de urgência. Aquele sorriso simbolizava tudo o que perdera e estava com medo de conseguir a liberdade de volta. Fitou a moça, que parecia meditar no que lia. Ela parecia feliz. Parecia viva! Sabia que andar lá fora era um tiro no escuro, mas o que custava arriscar? 

- Estou no escuro de qualquer forma...

Um pé pra fora do quarto. Ela sorriu novamente.
E não conseguiu evitar sorrir de volta.

Sabia que o resto era apenas história.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Incerteza




Parou diante daquela luz. Sabia que deveria arriscar. Uma luz forte, convidativa. Conseguiu vislumbrar vultos dentro daquela luz. Vultos do presente alheio, sombras de um futuro agradável. Vislumbrou mais futuro que presente, mas estava indeciso. Como abandonar aquele lugar? Até então, aquilo não tinha sido seu chão? Se abandonasse, pareceria ingratidão e isso era intolerável...

- Não era?

Pensou na própria estupidez, pois não pesara o pretérito ao abrir aquela porta. E agora que o fazia, percebeu o quão ganancioso era. Estava disposto a abandonar a segurança do seu mundo pelo risco de uma talvez alegria. "Bobagem... A alegria nunca se reflete num talvez. Ou é ou não é!", pensou. No entanto, sentia algo inexplicavelmente bom pra fora daquele lugar.

Pensou em seus próprios limites. Tudo agora se limitava à ação. Ir ou não ir. "Existe ação impensada?", murmurou. Não ouviu resposta, apenas o silêncio habitual. Perguntou-se se deveria focar mais naquela luz que emergia da porta. Apertou os olhos. Distinguiu a figura de uma moça morena do outro lado da rua. Ela sorriu, amigável.

Sabia que deveria arriscar.
Sim, sabia.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Risco




Parou diante da tela branca. Não sabia o que arriscar. Não ainda. Aquela sensação imperceptível e familiar estava presente de novo. Sabia o que viria em seguida: o sublime triunfo, a falta de reconhecimento, o profundo vazio. Insistia naquele hábito, que alguns chamavam hobby. "Arrogantes...". Conhecia os limites de sua própria arrogância, mas odiava vê-los nos outros. Pareciam tão... 

Ilimitados.

Resolveu que ficaria ali sentado até saber o que arriscar. Pensou em diversas estruturas, em diversos conceitos, mas não achou algum que o alegrasse. A satisfação dos outros tempos era imediata, mas agora era fruto de árduo esforço. Trabalhava tal qual um operário. A diferença é que construía um prédio em ruínas, consumido pelo tempo. A poeira se acumulava em seu local de trabalho. Os tijolos eram todos velhos e já sabia como utilizá-los. O tempo diluía o ritmo da construção.

Levantou-se e abriu a janela. O toldo do quintal impedia-o de ver se havia sol. O tempo era frio, costumeiro, quase amigo. Pegou um casaco, desligou o instrumento de obra e saiu do quarto. Parou, por um tempo, diante da porta da sala. Ir lá fora soava como uma excentricidade. Colocou a mão na fechadura e girou a maçaneta. Claridade.

Não sabia o que arriscar.
Não ainda.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Sentido



Há tempos em que você se acomoda. São tempos em que o pretérito domina a vida e o som dos sinos de outrora era apenas fantasia. Não existe sol, luz, calor ou som. O nada se torna aquilo que lhe completa. Surgem as tais questões sobre a vida, mas que vida? Levantar e ativar o modo de espera constitui vida? Ou agir determina o ser? 

Ser ou não ser?

A vida te chama à prática. A vida exige prazos e encerra ciclos. Demanda que cresças, que te tornes útil. Imperativa, força-te a ser alguém, mesmo que tu não saibas quem és. Não precisas de personalidade, precisas ter pressa. O tempo não anda a teu favor. Tu irás perder tempo com devaneios? Não vês que os papéis se acumulam, que as pessoas passam, que o relógio anda e tu ainda estás parado?

Ser por ser?

Não sei o que ainda faço aqui. Penso que o mundo está andando depressa demais e eu vou andando num ritmo lento. Aprecio o mistério de apreciar o tempo, enquanto as pessoas apenas correm os olhos por ele. Culpa, dor, lamento, sacrifício e fardo... Elas querem levá-los, mas sei que não devo. Penso no julgamento e não me declaro culpado. Exclamo minha inocência em curta resposta:

- Não ser!

terça-feira, 2 de abril de 2013

Vermelho (pt. 2)




Escuridão.

Valter já havia perdido a noção do tempo em que estava ali naquele porão com aquelas duas malucas. Se não estivesse preso, facilmente as subjugaria. Pensou no que faria com elas. Fantasiou com as diversas torturas que praticaria com aquelas vagabundas. "Primeiro, vou pegar a mais nova e então..."

Abriu os olhos e vislumbrou a figura da irmã mais velha. Ela sorria com o alicate na mão. Olhou para o carrinho que estava próximo à irmã mais nova e contou, desesperado, trinta dentes.

- Que decepção, Valter... Esperava que você tivesse uma dentição completa!

O olhar do homem exalava ódio. As irmãs haviam apostado quantos dentes arrancariam dele e se ele desmaiaria no processo. Os gritos dele se mostraram completamente inúteis e a escuridão chegou antes que não existissem mais caninos.

- Desculpe-me a remoção completa. Da próxima vez, serei mais cuidadosa... - zombou a moça.

A irmã mais nova abriu um sorriso, mostrando dentes imperfeitos. Valter não levantou a cabeça:

- Quando vocês irão me soltar?

- Você não vai embora até estar completamente purificado.

"Purificado? O que essa doida está dizendo?", pensou o homem. De repente, um som alto ecoou na sala. Valter reconheceu o som de uma serra sendo ligada e tentou se libertar. A irmã mais velha não se abalou com as súplicas do homem, pois recebeu o pesado objeto das mãos da irmã caçula de uma maneira muito calma. Petrificado, Valter escutou as últimas palavras:

- Tudo estará acabado quando parar de chover sangue...

Gritos de dor.
Um líquido vermelho.
Escuridão.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Vermelho




A menina do vestido vermelho andava pela calçada. Sem pressa, quase saltitando. Ela sentia que aquele era um dia de sorte, mas não podia expressar sua felicidade. Estava tão ocupada em seus pensamentos que não notou o par de olhos que seguiam seus passos. O homem percebeu que ela andava sozinha e estava cada vez mais perto dela. Ela parou diante do semáforo fechado.

- Está perdida?

Ela titubeou. O tom dele era caloroso. Ela sentiu medo por uma fração de segundo, mas voltou a ficar alegre. Sabia que, em breve, estaria em casa.

- Posso te levar pra casa... Segura a minha mão!

Sem hesitar, a menina segurou firme a mão do homem e indicou o caminho com a mão livre. Estava a poucas quadras de sua casa. O homem sorriu, discretamente. Olhou para os lados e certificou-se de que ninguém prestara atenção. Fitou a menina. "Deve ter uns dez anos, talvez menos", pensou. Sentiu que era o seu dia de sorte, mas não podia expressar sua felicidade. A menina indicou a rua à esquerda e ele obedeceu.

- Seus pais estão em casa?

Ela balançou a cabeça, em negativa. "Que sorte...", sorriu. Aproximaram-se da casa nº 33 e ela tirou uma chave do bolso do vestido. Era tão magra que o vestido dançava em seu corpo. Ela estendeu a chave para o homem e sorriu. Ele retribuiu o sorriso e abriu a porta. Ela entrou primeiro e ele a seguiu no escuro. Sentiu uma pontada no pescoço e, em seguida, o gosto do assoalho. 

Escuridão.

***

Acordou horas depois, assustado. Tentou se mover, mas os braços e pernas estavam presos. Estava sentado numa cadeira de dentista. Olhou ao redor, mas não viu ninguém. Estava numa espécie de porão. A iluminação era precária, mas distinguiu a silhueta de uma mulher se aproximando:

- Ah, acordou? Pensava que ia descansar mais, seu dorminhoco! - sorriu, afável, e prosseguiu: - Obrigada por trazer minha irmã pra casa...

O homem percebeu o vulto da menina ao lado da mulher. Ela o encarava, friamente. Percebeu que se encontrava numa situação desfavorável e pôs-se a gritar. A mulher apontou:

- Essas paredes são grossas. Ninguém vai ouvir seus gritos.

- O que eu estou fazendo aqui? - perguntou o homem, com desespero.

- Ora, você veio em busca de diversão, certo? - a mulher provocou - Pena que eu sou velha demais pro seu gosto, não é?

Ele ficou calado. "Burro, burro!", castigou-se mentalmente, "É óbvio que ela não estaria sozinha em casa!". 

- O que você quer? Dinheiro? - conseguiu perguntar, após um longo suspiro.

- Dinheiro não me interessa. O pouco que tem na sua carteira já é meu, de qualquer forma. Você tem uma vida muito entediante, Valter... - ele a encarou com ódio - Sim, vi seu nome na sua identidade. Sei que você é um simples dono de loja, casado...

De repente, a mulher ficou calada e fez um sinal para a menina, que sumiu de vista. A mulher prosseguiu:

- Sua carteira me disse muita coisa, Valter... Sei que tem duas filhas. Será que você faz com elas a mesma coisa que queria fazer com a minha irmã? - perguntou, sem emoção.

Ele não respondeu. O homem escutou o som de algo sendo empurrado. A menina apareceu diante dele empurrando uma espécie de carrinho. Quando Valter percebeu o que estava em cima do carrinho, um calafrio percorreu sua nuca. Distraído, não percebeu que a menina se aproximava com um pano. Tentou gritar novamente, mas a menina conseguiu amordaçá-lo sem problemas.

- Deixe-me dizer uma coisa, Valter... Eu conheço homens como você. Você gosta de meninas novinhas... E quanto mais novinhas, melhor! - havia desprezo na voz da irmã da menina - Você se engana, dizendo que será a última vez, mas sempre continua...

Ela aproximou o rosto

- Sabe o que você é, Valter? Você é sujo!

Ela pegou o alicate que estava em cima do carrinho.

- Deixe-me purificá-lo.

A mulher começou a puxar as unhas dele com o alicate. Ele urrava de dor e o sangue jorrava de seus dedos. O homem notou que havia um sorriso no rosto da menina.

Então, houve apenas silêncio.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Incorreto



- Eu sou especial.

É o que mais ouço. Estou cercado por pessoas diferentes e únicas, cheias de entendimento. Sofisticadas, cheias de definições e certezas. "Sou isso, faço isso, tenho isto". Não há espaço pra dúvida, pro erro, pro inadequado. Tudo é perfeito. Tem que ser perfeito. Não existe espaço pra mim neste mundo. Creio no que é falho. Erro o tempo todo, pois não vivo pra ser perfeito. Então, se não existe espaço para o erro, quero inovar em ser errado. Se não existe espaço para a insanidade, deixe-me ser perfeitamente desequilibrado. Deixe-me ter medo e dúvida. Deixe que o tempo me diga quem sou. Por ora, não tenho ideia. Mas sei bem o que quero nesse mundo cheio de pessoas perfeitas:

- Ser absurdamente errado.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Canção para as estações




Tão calma, tão serena
Flores que caem.
Tão forte, pretenso
Para o sol, eles saem.

Tão seco, tão perene
Folhas que caem.
Tão vazio, tão intenso
Sufoca os que saem.

Memórias tão vívidas
Não são tão mais nítidas.
E os olhos antes claros
Mostram-se opacos.

Persigo o sol do meio-dia
E aquela luz tardia.
Esqueço o frio, por ora
A esperança renova.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Pressa




Lá fora, o tempo corre e o barulho é alto. Dedos ágeis correm a tela. Ansiosos, gritam e esperneiam. Andam de um lado para o outro. Exasperados, esperam que o tempo não espere. Enganam-se. Andam com as feridas completamente expostas, mas dizem estar bem. Tem tudo, mas não se satisfazem. Insatisfeitos, reclamam e compartilham sua dor. Sofrem e ampliam seus sofrimentos. Sobrevivem.

Aqui dentro, o tempo corre e o silêncio reina. Observo toda a dor do mundo e luto contra a ansiedade. Prefiro estar sentado. Não por arrogância! Eu já tenho os pés cansados... Eu espero o tempo em que o tempo acabará. Não ando mais enganado e tento me cuidar. Procuro não reclamar. E eu, que nada tenho, procuro entender a dor dos que tudo têm. E existem outros como eu: que compreendem as dores e sofrimentos da vida. Sem reclamar. Compartilham. Doam-se.Vivem.

Sem pressa.