quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Espera

Espera, eu vou escrever sobre nós. Eu vou descrever teu cheiro, teu gosto, teu jeito, teu modo de sorrir. A tua paciência. O teu modo de falar coisas sobre nós que o mundo não consegue decifrar. Também vou falar como sou melhor quando estou com você. Eventualmente, vamos brigar, mas relevamos, afinal nosso amor é tão puro, tão doce, tão suave. Tão no início. No início, tudo é suave, tudo é doce, puro... Eterno... Vamos ao parque, ao cinema, eu não te conheço e rio das coisas bobas e desajeitadas que tu fala. E você aprende que eu sou seco, mas que me abro aos poucos. Eu te apresento os meus amigos e eles te acham engraçado. O teu cheiro já está na minha roupa de cama e tua escova de dentes já está no armário do banheiro. Não conversamos mais como antes porque você tem que sair cedo pro trabalho e eu tenho que pensar nas coisas que tenho pra fazer, se vai dar tempo de passar no mercado antes de ir pra aula e ainda tem estágio e tô vendo o tempo do ônibus e tô achando que não vai dar tempo não, hein? Daí as brigas aumentam, tua paciência diminui, a minha aumenta e nós vamos nos conhecendo mais. O teu beijo ainda é doce, o teu toque ainda é suave, mas nós nos acostumamos a não falar mais das coisas indecifráveis porque elas estão lá, nítidas, e todos já veem quem somos e o que gostamos. Que gostamos um do outro. E isso é o que importa, não é mesmo? Eu penso que sim, mas não sei o que você pensa e isso me dá um medo danado porque eu te amo. Sim, amor devia ser suficiente. Só que as brigas ficaram mais frequentes e eu também não sou lá um poço de paciência. Veja bem, eu tento te ouvir, mas não dá certo quando só você quer falar. Fala baixo que nossos amigos podem ouvir. Tá bom, escuto, desculpa, pronto, tá acabado. E aí vou tentando consertar os erros, tentando melhorar, mas que porra, você não vê? Tá certo, então vai. Vai embora. Duvido que vá. E você fica porque já se acostumou e já faz alguns anos que estamos juntos. O amor ainda está lá, mas vai se perdendo. E eu sei que está perdido porque eu estou escrevendo um bloco único de agonia e desespero na esperança que você fique. Já nem brigamos. Não nos falamos. Espera, não vai. De repente, não existe mais nós, só eu e você, e já nem sabemos como é ser sem o outro. Só que numa tarde você junta suas coisas e, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, você já foi. E eu não disse nada porque vou te escrever uma carta que deve ser lida num fôlego só. Ela vai ser doce, suave, intensa e deprimente. Espera, eu vou escrever.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Sombras

Não passo um dia sem lembrar
Daquelas velhas e frágeis árvores
Que lançam suas sombras aos indecisos
E oferecem um refúgio do escaldante sol
Mas que escondem segredos
Que machucam

Não que eu guarde qualquer ressentimento
Mas desejo com intensidade e força necessárias
Que as belas e imaculadas flores, tal qual seus frutos,
Apodreçam, sem gerar sementes
Pois alimentam os néscios
Que escondem segredos
Que machucam

Ora, neste mundo, não existe amor, amar ou ser amado
Pessimista? Não pra alguém que se entregou inteiro
E se viu catando os próprios pedaços
Debaixo das frondosas árvores
Que lançam suas sombras
Com seus segredos
Que machucam (machucam, não é mesmo?)
E matam.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Confissão

Perdoe-me, padre, porque eu pequei. Sim, não faz tanto tempo desde a última vez que vim, mas sinto que preciso vir toda semana. Já virou costume nas sextas... Enfim, eu tenho roubado. Não, padre, eu nunca precisei roubar nem um centavo na minha vida inteira. Graças a Deus. Ando roubando o direito dos outros. Tô dizendo por aí que os ímpios não têm o mesmo direito que eu, um filho de Deus. Eu sei, padre. Mas eu tô certo, ué. Vai dizer que é certo que esse povo tenha o mesmo direito da gente? Sim, a gente, o senhor também tá nessa. Eu sei, padre. Desculpe. Ah, também ando matando. Sabe aquela puta... Perdão, padre, foi impulso. Sabe aquela mulher que o marido matou de tanto espancar? Eu fui o culpado. Não, padre, eu nunca vi aquela mulher na minha vida. Só que eu vivo dizendo por aí que mulher deve ser submissa, então eu sei que eu a matei. Graças a Deus, minha mulher é submissa. Deus me livre ter que corrigir minha esposa, ainda bem que ela é uma boa serva de Deus. Também fui culpado da morte daquele veadinho da semana passada e pelo filho maconheiro da irmã Solange ter sido preso - coitada, uma irmã tão boa ter um filho marginal daquele. Agora, todo mundo chama maconheiro de usuário. Usuário que vá pro inferno! Perdão, padre. É que ando cansado de destruir tantas vidas. Odiar é uma coisa muito desgastante. Meus filhos têm medo de mim. Às vezes, vejo o diabo nos filhos dos outros. O senhor sabe que ele veio pra roubar, matar e destruir? Mas não nos meus filhos. Eu sei que meus filhos são bons. Eu os criei certo, não criei? Sim, padre, pode perguntar. Amor, padre? Pelo amor de Deus. Só vim em busca de absolvição. Tá certo, padre. Vou rezar cinquenta ave-marias e trinta pai-nossos. Mas não, padre. Não vou parar. Até à próxima sexta.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O ressoar dos sinos

Corre, escuta o ressoar dos sinos:
- Salvem-se todos, salvem-se...
E na insana dança dos meninos,
O som gélido de destruição e morte.

Corre, atenta ao ressoar dos sinos:
- Salvam-se poucos, salvam-se...
Ora, são gestos abruptos e ferinos
Mas fingem que há quem se importe.

Corre, examina o ressoar dos sinos:
- Salvam-se loucos, salvam-se...
Pois se apoiam em laços muito finos
Que não sustentam nem o próprio porte.

Para, quem corre agora é o ressoar dos sinos:
- Salve-se, salve-se, salve-se, salve-se...
O tempo dobra, o olhar não volta, é desatino!
E abandona todos, poucos, loucos à própria sorte.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Tépido

O gosto ruim subia à boca de quando em quando, mas agora era mais insuportável do que nunca. Pôs a mão na garganta, numa tentativa inútil de suprimir a ânsia que ganhava força a cada inspiração. Não podia sair no meio da reunião, não tinha como se recompor. Controlou-se. O jeito era segurar firme enquanto pudesse. Teria sido alguma coisa que havia comido? O que lhe fizera tão mal? Não, não era. Sabia que não, pois a sensação, antes esparsa, agora era cotidiana. Como esconder a vergonha? Sabia que todos o observavam agora, pois já estava quase curvado no esforço de conter o vômito iminente. Não podia sair, sabia que não, mas era inevitável.

- Com licença, preciso sair por um momento...

Ninguém prestou atenção. Nenhum olhar se voltou para ele, nenhum músculo na sala se mexeu em sua direção. Surpreso, pôs-se a encarar o rosto dos colegas, mas eram feito de vidro e, como tal, transpareciam a realidade tão evidente: ele era invisível. Minto, ser invisível requer um estado único e não havia nada único em sua presença. Ele só não se destacava. Seu sorriso era esquecível. Os colegas não se lembravam de sua presença. Não incomodava, mas também não inspirava. Era dispensável. Um tanto-faz.

Morno.

Ao ter consciência de sua natureza, não conseguiu controlar mais o enjoo. Abriu a boca e deixou escorrer o líquido. Era apenas água e mais água e mais água... Ela corria pelo chão, os colegas continuavam impassíveis e ele quis inundar o mundo com a sua presença, mas só conseguia se dissolver lentamente à medida que o líquido caía profusamente pela sala. Percebeu que estava sumindo e se deu conta do pouco tempo que lhe restava, mas nem lágrimas havia para chorar - triste ver que nem poderia chorar pelo seu inevitável fim -, pois toda água saía apenas de sua boca. Não podia fazer nada senão esperar que cada parte do seu corpo fosse desaparecendo. E, antes que sua última fração se dissipasse, teve uma epifania: de que seria notado. Nem que fosse na forma de uma incômoda poça de água.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Aos pedaços

Fixou o olhar na janela e o silêncio imperou outra vez. Aos poucos, começa a ouvir o som dos próprios pensamentos. Lentamente, vem vindo o mosaico de questões. Vai se perguntando quando todo o inferno foi criado e por que não conseguiu ver. Estava tão cego assim? Quando perdeu a importância? Estava tão ocupado com seu próprio jogo, com sua própria vida medíocre que se esqueceu? Resolve engolir o próprio orgulho, pois sabe a resposta dessas perguntas já tão pretéritas. O mundo lá fora está correndo e o tempo vai andando, sem pressa. Só ele não juntou as peças?

- ...
Pensa agora no futuro que há de encarar e pensa se é necessário. Vale a pena? Por acaso, algum dia valeu? Sabe, pelo menos, que nunca se deixou enganar, nem por um minuto. No entanto, isso não é consolo suficiente. Não pode fazer muito a respeito, mas pode prever a tempestade que está por vir. No mundo que vai desmoronar - não há engano aqui; tudo vai cair aos pedaços - e indaga quem estará lá para remendá-lo quando acontecer? Uns consertam os outros, outros arrumam um, mas ninguém se dispõe a salvar um rejeitado. E, sendo rejeitado, só lhe resta abraçar os que são jogados fora, pois sabe o que significa não ter valor algum.

domingo, 5 de abril de 2015

Poema pra te salvar mais depressa

Não faz muito tempo que quis
Escrever um poema pra te salvar mais depressa
Falhei, as palavras faltaram
A rima era pobre e a intenção, fraca.

Não faz muito tempo que quis
Compor uma canção pra te dar esperança
Falhei, não há melodia
Rima inútil, música simplória.

Não faz muito tempo que quis
Remendar o tal coração em pedaços
Falhei, não há jeito
De consertar um lado que já está tão quebrado.

A verdade é que não resta muito tempo
Pra compor uma música ou escrever poesia
Só o consolo da companhia
Só o consolo de estar por perto.

Hoje eu só quero escrever
Um poema pra te salvar mais depressa,
E chego à conclusão
Que é uma canção pra não te perder mais rápido.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Batismo


Seus pés brincavam com a mistura de areia e água. Água fria. Gostava da sensação de leve torpor que invadia o seu corpo. O sol ainda estava fraco, por isso estranhou a súbita vontade de entrar no mar. Quando deu por si, estava com a água pela cintura. O torpor aumentou, mas era agradável e não o incomodou. Continuou seguindo e só parou quando a água estava chegando no nariz. Virou e deixou que seu corpo flutuasse por sobre a água.

E flutuou. Há quanto tempo estava daquele jeito? Minutos? Horas? Perdera a noção do tempo. Boiava apenas e isso era o que importava. O entorpecimento lhe causara o efeito contrário: passou a sentir. Sentir-se, antes de tudo. Pareceu-lhe que o antes era um ilusão e o agora era a verdade. A água tocava o seu rosto e milhões de formigas correram por seu corpo. Sentia  o beijo frio do mar enquanto flutuava sem destino. 

Ouvia um som, isso era certo, Um único som distante. Da arrebentação, talvez? Ou do coração que ainda pulsava nele? Não sabia que som era, mas era um som de vida, de quem era completo e não sabia. Na água, era completo. Ele e o mar eram um, afinal. Eram um templo cheio de vida e som e ar e calor (apesar do frio) e estavam um no outro.

Decidiu voltar. Pôs peso no corpo e decidiu tocar o fundo. Não dava pé. Apesar disso, não houve desespero. Voltou na metade do caminho e pôs-se a dar braçadas inúteis. A areia estava longe e sentiu-se cercado pela imensidão do oceano. O esforço começou a cobrar seu preço e, de repente. se viu sem forças. Sentiu o gosto da água salgada invadir sua boca, enquanto seus pulmões gritavam por ar. A resposta foi mais água. Afinal, a água era tudo e tudo era água, não é? 

Escuridão.

Sentiu que alguém lhe puxava. Voltou aos poucos à medida que abandonava a água. Um grupo de pessoas o observava de cima e um homem de vermelho lhe perguntou:

- Está me ouvindo?

Piscou. Fechou a mão e sentiu a areia úmida entre os dedos.

- Como se sente? - perguntou o homem.

- Infinito. - respondeu.