terça-feira, 16 de julho de 2019

Eu não esqueço

Camarada,

Perdão pela demora. Mal tenho tempo para parar e não gosto mais de escrever. Escrevo pela necessidade. Não vou discursar aqui porque você sabe da importância disso, mas peço perdão e vou tentar ser mais rápido em te dar alguma resposta.

Foi dolorido ler e saber o que tu passou. Eu sabia pelos outros, mas tem coisa que só quem levou porrada é que sabe. E vem uma vontade de te pedir desculpa, mas aí lembro que a culpa é toda deles. E vem raiva. E ódio. E tristeza. Mas o tempo é muito precioso pra ficar sentindo.

E nada disso importa. Ela não tá mais aqui.

Por muito tempo, lembrei. Fiz questão de lembrar cada traço do rosto dela, cada marca, o cabelo, o cheiro, o sorriso, a timidez dela quando eu olhava pra ela de um jeito que só a gente entendia. Depois foi dolorido demais lembrar. E ainda dói porque eu vejo aquela foto dela todo dia. É o que me motiva pra não esquecer dos outros. Nessa altura do campeonato, não posso achar a luta inútil, querer jogar tudo pra cima e colocar essa dor acima da dos outros porque essa agonia não é exclusividade minha.

A dor é a herança dos pobres, camarada.

Então hoje o meu refúgio não é lembrar. É não esquecer. Por isso que te respondo numa carta feita de papel, tinta e intenções sem saber se ela vai chegar no destinatário. Eu te escrevo porque quero que você saiba que eu luto para ter memória. Não posso esquecer quem ela era e todos os outros que também eram e não são mais. É um esforço sobre-humano registrar sem cair na desesperança, mas também é perigoso ficar esperançoso demais. Só que como há de sermos humanos sem ter expectativa que a vida vai melhorar? E que esse governo de merda vai cair, que todo mundo vai ser responsabilizado e que ela vai poder descansar em paz um dia? Penso que vai haver um dia que isso vai ser passado, mas ainda assim minhas palavras estarão lá para que ninguém se esqueça do horror que vivemos.

Porra, não tem como não discursar.

Mande notícias.

16/07/2021