segunda-feira, 27 de abril de 2015

Tépido

O gosto ruim subia à boca de quando em quando, mas agora era mais insuportável do que nunca. Pôs a mão na garganta, numa tentativa inútil de suprimir a ânsia que ganhava força a cada inspiração. Não podia sair no meio da reunião, não tinha como se recompor. Controlou-se. O jeito era segurar firme enquanto pudesse. Teria sido alguma coisa que havia comido? O que lhe fizera tão mal? Não, não era. Sabia que não, pois a sensação, antes esparsa, agora era cotidiana. Como esconder a vergonha? Sabia que todos o observavam agora, pois já estava quase curvado no esforço de conter o vômito iminente. Não podia sair, sabia que não, mas era inevitável.

- Com licença, preciso sair por um momento...

Ninguém prestou atenção. Nenhum olhar se voltou para ele, nenhum músculo na sala se mexeu em sua direção. Surpreso, pôs-se a encarar o rosto dos colegas, mas eram feito de vidro e, como tal, transpareciam a realidade tão evidente: ele era invisível. Minto, ser invisível requer um estado único e não havia nada único em sua presença. Ele só não se destacava. Seu sorriso era esquecível. Os colegas não se lembravam de sua presença. Não incomodava, mas também não inspirava. Era dispensável. Um tanto-faz.

Morno.

Ao ter consciência de sua natureza, não conseguiu controlar mais o enjoo. Abriu a boca e deixou escorrer o líquido. Era apenas água e mais água e mais água... Ela corria pelo chão, os colegas continuavam impassíveis e ele quis inundar o mundo com a sua presença, mas só conseguia se dissolver lentamente à medida que o líquido caía profusamente pela sala. Percebeu que estava sumindo e se deu conta do pouco tempo que lhe restava, mas nem lágrimas havia para chorar - triste ver que nem poderia chorar pelo seu inevitável fim -, pois toda água saía apenas de sua boca. Não podia fazer nada senão esperar que cada parte do seu corpo fosse desaparecendo. E, antes que sua última fração se dissipasse, teve uma epifania: de que seria notado. Nem que fosse na forma de uma incômoda poça de água.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Aos pedaços

Fixou o olhar na janela e o silêncio imperou outra vez. Aos poucos, começa a ouvir o som dos próprios pensamentos. Lentamente, vem vindo o mosaico de questões. Vai se perguntando quando todo o inferno foi criado e por que não conseguiu ver. Estava tão cego assim? Quando perdeu a importância? Estava tão ocupado com seu próprio jogo, com sua própria vida medíocre que se esqueceu? Resolve engolir o próprio orgulho, pois sabe a resposta dessas perguntas já tão pretéritas. O mundo lá fora está correndo e o tempo vai andando, sem pressa. Só ele não juntou as peças?

- ...
Pensa agora no futuro que há de encarar e pensa se é necessário. Vale a pena? Por acaso, algum dia valeu? Sabe, pelo menos, que nunca se deixou enganar, nem por um minuto. No entanto, isso não é consolo suficiente. Não pode fazer muito a respeito, mas pode prever a tempestade que está por vir. No mundo que vai desmoronar - não há engano aqui; tudo vai cair aos pedaços - e indaga quem estará lá para remendá-lo quando acontecer? Uns consertam os outros, outros arrumam um, mas ninguém se dispõe a salvar um rejeitado. E, sendo rejeitado, só lhe resta abraçar os que são jogados fora, pois sabe o que significa não ter valor algum.

domingo, 5 de abril de 2015

Poema pra te salvar mais depressa

Não faz muito tempo que quis
Escrever um poema pra te salvar mais depressa
Falhei, as palavras faltaram
A rima era pobre e a intenção, fraca.

Não faz muito tempo que quis
Compor uma canção pra te dar esperança
Falhei, não há melodia
Rima inútil, música simplória.

Não faz muito tempo que quis
Remendar o tal coração em pedaços
Falhei, não há jeito
De consertar um lado que já está tão quebrado.

A verdade é que não resta muito tempo
Pra compor uma música ou escrever poesia
Só o consolo da companhia
Só o consolo de estar por perto.

Hoje eu só quero escrever
Um poema pra te salvar mais depressa,
E chego à conclusão
Que é uma canção pra não te perder mais rápido.