quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Dissonância

A música grita nos fones de ouvido. Parece isolado do mundo, mas não se desconecta. O som das teclas batendo apressadamente enche o quarto. A televisão está ligada, mas ninguém assiste. Ainda há o vozerio dos vizinhos, o grito das crianças, o farfalhar das folhas no quintal... Mas ele não se liga a nenhum som em particular. Aliás, ele nem percebe o som ao redor.

Ele enche sua vida com sons. Diversas alturas e intensidades. Diferentes ritmos, compassos elaborados. A música que não dá resposta para as angústias. Buscando profundidade em relacionamentos rasos que acontecem por meio de um frio monitor. Os canais que não assiste são a fonte do saber que irá reproduzir em suas conversas. Trancado em seu mundo, se conforta em ouvir sobre a segurança do lado de fora.

Apenas ouve. E não ouve.
Tantos sons... Não é irônico?
O mais alto ainda é o da solidão.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O desenho

Silêncio. Olhos fixos na estrada. Estava preocupado em voltar para casa. A viagem lhe parecera mais longa do que o necessário. Teria sido esse o motivo da discussão com a esposa? Não lembrava. Arriscou um olhar para o banco do carona. A mulher parecia cansada. "Essas reuniões familiares me deixam louca!", era o que costumava dizer a ele. Talvez esse tenha sido o motivo? As reuniões que ele também detestava? Olhou pelo retrovisor e admirou a menina que desenhava no banco de trás. O lápis amarelo correndo pelo papel era a única coisa que quebrava o silêncio. A esposa continuava a olhar para a paisagem, desinteressada. Pensou em mil maneiras de pedir desculpas, mas as palavras pareciam insuficientes.

- Papai, papai... Olha! - a voz da filha o tirou do turbilhão de pensamentos.

Levantou os olhos e admirou o desenho simples que a filha fizera. O sol amarelo brilhava em cima de uma casa de proporções monumentais. Árvores e flores. Os três estavam de mãos dadas. Felizes. Percebeu que o motivo da briga não importava. Elogiou o trabalho da filha e sua voz pareceu acordar a esposa da apatia em que se encontrava. Quando ela se voltou no banco para admirar o desenho, não estava ali a mulher cansada da viagem, mas sim a moça de cabelo castanho e sorriso bonito por quem ele se apaixonara. Soltou a mão da marcha e segurou firme a mão da esposa. Havia surpresa no olhar dela, mas o sorriso era radiante. Nenhuma palavra precisou ser dita. 

Tudo ficou impresso naquele desenho.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Andando



- Pare.

Já estou parado há tanto tempo... Não, não me entenda mal. É apenas uma constatação. Também percebo que sempre obedeço as ordens do tempo (mesmo que dure tempo demais). É benéfico? É sadio? O tempo não responde. O relógio está preocupado em girar os ponteiros. Cruel, não há quem o detenha. 

Era o que eu achava...

Hoje entendo que esperar é diferente de parar. Em movimento, espero. As engrenagens do tempo não param? Bom saber, não me restrinjo a elas. Se o tempo é o senhor da razão, vivo na insanidade do Eterno. Se dizem que o tempo faz tudo esquecer, lembro que o perdão é divino. Descubro um velho caminho, mas único e perfeito. Sigo nesse caminho estreito, difícil e penoso, mas que traz vida. Culpa e dor? Já os troquei por felicidade há muito tempo...

- Pare! - diz o tempo.

Não mesmo.