quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Vocação

Era cedo da manhã, umas cinco horas, e ele descia a rua com pressa. Não estava atrasado, mas andava rápido porque estava feliz e esse era um momento de celebração. Na verdade, a celebração começara uns meses antes quando saiu o resultado do vestibular. Aprovado em Direito, era uma alegria sem tamanho. Não cabia em si. Dona Maria tinha até chorado. Pela primeira vez, o choro não era como o das outras noites, da tristeza de ter perdido José. Era um choro de liberdade.

Ele descia a rua e pensava em como o futuro prometia. O que José teria dito se visse seu irmão indo pro primeiro dia de aula na faculdade? "Cabeça erguida, boy", a voz dele ainda era nítida na memória. "Não deixe que eles te pisem, cabeça erguida". A mãe ainda chorava todas as noites antes de dormir, ele ouvia tudo. Privacidade não existe num barraco. Ela pedia a Deus que José guardasse seu outro menino, mas Emanuel não acreditava. José não era estrela, não era anjo. Só havia sido e não era mais.

Emanuel agora subia a ladeira que levava ao ponto de ônibus e pensou em como tinha sido difícil. Muito esforço, claro, mas muita ajuda também. Tinha vinte e cinco anos e sempre estudou muito. Apesar disso, nunca era suficiente: saía muito atrás dos concorrentes. "Ah, é só se esforçar", diziam. "Mais?", respondia, exasperado. Aquele cursinho gratuito que o governo abriu perto do trabalho ajudou pra caramba, isso sim. Todo dia deixava o sorriso de vendedor da loja de sapatos pra trás e encarava sério os livros. Sabia de sua vocação desde muito cedo porque achava o mundo muito errado. Queria mudar o mundo; os outros riam de sua ingenuidade, mas já estava acostumado com a risada dos outros.

Lembrou-se do dia que estava na quarta série e se deparou com os colegas rindo de algo. Aproximou-se para ver o motivo de tanta risada. Estremeceu quando viu o que estava escrito. Não entendia bem, mas sabia que aquilo machucava. Uns dias antes, a professora pediu pra todos escreverem num pedaço de papel o nome e colocarem o que queriam ser da vida. Depois, juntou todos e colou numa cartolina e deixou à mostra de todos, em cima do quadro-negro. "É pra vocês sempre se lembrarem que vocês podem ser tudo o que quiserem". Ela era doce, mas ele não lembrava o nome dela. Pois bem, um dos colegas havia colado por cima do que Emanuel havia escrito. O resultado: "Emanuel é um macaco sujo". Estremeceu novamente só de lembrar. Nesse dia, ele foi pra casa com o coração miúdo, pequeno mesmo. A mãe ainda não havia chegado do trabalho, levava duas horas da casa da patroa pra chegar ali no morro. Ele sabia que não podia dizer aquilo à mãe, que já sofria demais com as coisas de José. O irmão viu Emanuel chegando e percebeu algo errado só de olhar pra ele.

- Que foi?

- Nada não... - os olhos cheios d'água mentiam.

- Diz logo, Emanuel, deixe de coisa.

Contou a história. Viu o rosto de José ir de uma fúria avassaladora a uma compreensão que só os pretos sabem que têm. É o olhar de quem sabe o peso de ser. José então disse, imponente:

- Emanuel, levante sua cabeça. Cabeça erguida, boy.
E disse algo em seu ouvido. Emanuel olhou pro irmão com dúvida. José apenas assentiu com a cabeça.

No outro dia, Emanuel chegou na escola e foi direto falar com os colegas. Perguntou quem tinha feito aquilo. Um se acusou, confiante, era um moleque branco que não lembrava o nome. Aproximou-se dele e lhe desferiu um soco no rosto. Não disse nada, apenas saiu andando. Esperou que alguém o chamasse na diretoria, mas nunca veio o convite. Também nunca mais ninguém o chamou de macaco.

A ladeira parecia maior do que os outros dias, mas na verdade Emanuel só andava mais devagar. Era tempo de sobra pra chegar no trabalho, então pôs-se a pensar no passado. Lembrou do dia da morte de José. Um dos amigos dele tinha vindo na porta de casa dizer que os polícia tinham matado o irmão. Dona Maria saiu correndo doida, mas quando chegou só tinha um corpo estirado. Enterrou o filho, mas continuou sofrendo ao ver o noticiário matando ele uns dias mais. Era a mãe do traficantezinho, do drogado. Nunca parou de chorar pelo filho, mas o sofrimento dela foi diminuindo um pouco. Tinha que viver pelo outro filho e Emanuel era muito jovem ainda, era sete anos mais novo que José. Lembrou-se do dia em que estava almoçando pra ir pro colégio - já tava no ensino médio, uns quatro anos da morte do irmão - e a mãe disse do nada:

- Ele vendia droga mesmo, Emanuel.

- Eu sei, mãe... - o rosto dele continuou no prato de feijão.

- Mas ele não merecia ter morrido daquele jeito.

Emanuel ficou calado. Então, ela segurou a mão dele e disse com peso na voz:

- Você nunca vai seguir esse caminho. Promete pra mim.

Ele prometeu. E cumpriu. Terminou os estudos e arrumou logo um serviço. Houve um tempo que viu as coisas faltando em casa e pensou, pensou, pensou, mas sempre lembrava da promessa. Toda vez que levava um escracho da polícia por estar andando na rua, lembrava. Quando alguém não queria sentar no seu lado no ônibus, lembrava. Não daria aquele gosto pra eles de ser o preto favelado traficante. Seria advogado, seria bem-sucedido, faria tudo direito. Era esta sua vocação, afinal.

Aproximava-se da parada de ônibus, bastava virar a esquina que chegava ao seu primeiro destino. Quando estava virando, um rapaz passou correndo e esbarrou nele. Emanuel pediu desculpas, mas só registrou o olhar de pânico. Era um menino, tinha uns 14 anos, provavelmente. O garoto continuou correndo, desesperado, e não olhou para trás. Quando Emanuel foi pegar sua pasta que derrubara no chão, deparou-se com um policial que apontava sua arma pra ele. A reação dele foi levantar os braços. 

O tiro o acertou em cheio no peito.

Emanuel caiu no chão e a blusa amarela - aquela blusa que sua mãe tinha lhe dado no Natal - se encheu de vermelho. Ouviu uns gritos, o policial que o acertara soltou um palavrão e parecia nervoso. Emanuel só pensava que não queria morrer. Que não era justo. Viu outro policial se aproximando. Dali do chão, todos pareciam gigantes.

- Capitão, eu me enganei... - o policial tinha voz de fuinha.

- Nem tanto, esse é até parecido com o ladrãozinho lá. - a voz do outro era fria.

- E agora? O que a gente faz? - o policial estava em pânico.

- Pega a arma que o outro deixou cair e coloca na mão desse. Liga pra ambulância depois, esse já era.

"Eu ainda sou", Emanuel pensou. Não queria dar o gosto de morrer ali, mas sentiu muito frio de repente. Pensou na mãe e sabia que ela iria sofrer. A certeza da morte se aproximava e Emanuel sentiu desgosto. Provavelmente, a mãe morreria disso. Não, ele sabia que sim. A morte lhe dava uma certa clarividência. Esperou que a vida lhe passasse diante dos olhos, mas isso o momento não providenciou. Pensou no irmão com nome de santo, mas sabia que nunca mais o veria. Sentiu uma grande solidão e quis chorar, mas não veio lágrima. A única coisa que saía em profusão era o líquido vermelho do seu peito. Ah, a terrível metáfora da redenção que cumpria em si mesmo.

Agora, a dor era lancinante. Emanuel lutava, lutava mais do que das outras vezes. Só que chega aquele ponto em que a morte se impõe. A certeza do final começava a pairar no ar. Um monte de gente havia se aglomerado e ele lamentou ser o centro desse espetáculo. Pensou que não mudaria o mundo e que isso era um grande desperdício. Foi então que, além da clarividência, o momento lhe concedeu iluminação e percebeu o engano que havia cometido. Percebera finalmente sua verdadeira vocação e aquilo foi manifesto em uma palavra que nenhum dos transeuntes entendeu:

- Estatística.