domingo, 29 de setembro de 2019

Fim do blog

Comecei a escrever no medium. Mesmo nome, mas talvez os textos sejam diferentes. Não sei ainda.
Provavelmente não vou mais escrever aqui, mas fica o arquivo.
É o fim do blog, mas todas as coisas acabam eventualmente.
E foi bom enquanto durou.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Volta


Para Mika.

Vem
E me dá um abraço apertado
Pra lembrarmos do amor que temos
Um pelo outro, desmedido e com apreço
Só me encontra em teus braços por um tempo
E vem.

Vai
Sem medo e em frente
Não esquece do amor que tu tens
Gigante, afetuoso e sem fim
Mas me prende em teus braços mais um pouco
E vai.

Volta
Pra eu te dar outro abraço apertado
Pois o amor completo que agora recebes
Já me deste, concreto em forma de abraço
Abstrato nos laços que nos envolvem
Tal qual uma fita, unindo nós dois
Em uma volta.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Eu não esqueço

Camarada,

Perdão pela demora. Mal tenho tempo para parar e não gosto mais de escrever. Escrevo pela necessidade. Não vou discursar aqui porque você sabe da importância disso, mas peço perdão e vou tentar ser mais rápido em te dar alguma resposta.

Foi dolorido ler e saber o que tu passou. Eu sabia pelos outros, mas tem coisa que só quem levou porrada é que sabe. E vem uma vontade de te pedir desculpa, mas aí lembro que a culpa é toda deles. E vem raiva. E ódio. E tristeza. Mas o tempo é muito precioso pra ficar sentindo.

E nada disso importa. Ela não tá mais aqui.

Por muito tempo, lembrei. Fiz questão de lembrar cada traço do rosto dela, cada marca, o cabelo, o cheiro, o sorriso, a timidez dela quando eu olhava pra ela de um jeito que só a gente entendia. Depois foi dolorido demais lembrar. E ainda dói porque eu vejo aquela foto dela todo dia. É o que me motiva pra não esquecer dos outros. Nessa altura do campeonato, não posso achar a luta inútil, querer jogar tudo pra cima e colocar essa dor acima da dos outros porque essa agonia não é exclusividade minha.

A dor é a herança dos pobres, camarada.

Então hoje o meu refúgio não é lembrar. É não esquecer. Por isso que te respondo numa carta feita de papel, tinta e intenções sem saber se ela vai chegar no destinatário. Eu te escrevo porque quero que você saiba que eu luto para ter memória. Não posso esquecer quem ela era e todos os outros que também eram e não são mais. É um esforço sobre-humano registrar sem cair na desesperança, mas também é perigoso ficar esperançoso demais. Só que como há de sermos humanos sem ter expectativa que a vida vai melhorar? E que esse governo de merda vai cair, que todo mundo vai ser responsabilizado e que ela vai poder descansar em paz um dia? Penso que vai haver um dia que isso vai ser passado, mas ainda assim minhas palavras estarão lá para que ninguém se esqueça do horror que vivemos.

Porra, não tem como não discursar.

Mande notícias.

16/07/2021

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Eu lembro

Meu caro,

Parei para olhar aquela foto de vocês que tanto gosto. "Parei" é modo de dizer, assim como "olhar". Não tem mais imagem pra ver e eu não paro quieto. Só paro quando chego em casa e deito a cabeça no travesseiro. Acho que "sonhei" é mais adequado, mas a língua agora é luxo e não posso me dar à reflexão. Fico deprimido. Saudoso. E saudade é um troço perigoso.

Não lembro de muitas fotos, mas dessa eu lembro. O teu cabelo bagunçado, o sorrisão dela, as árvores atrás, um mói de gente. Eu que tirei a foto, eu lembro da gente no parque. O mundo já começava a ruir, mas a gente não tinha se dado conta ainda. Quer dizer, ela já tinha; nós que não. Éramos dois lesados, mas ela sempre foi esperta. Guardei a foto de vocês no celular e fiquei de passar depois.

Esqueci.

No dia seguinte ela já tinha sumido. Um dia inteiro sumida e ela nem tinha falado nada em casa. Você sabia que ela tinha um medo da gota de sumir. Procurou nos cantos de sempre. Um dia virou um mês. Você já tava barbudo, desgrenhado. A mãe dela já não mais vivia, era uma sombra. As fotos de vocês no feed do Instagram deu lugar apenas às fotos dela com o nome DESAPARECIDA embaixo. Um mês virou seis. Seis, um ano. Outras fotos e outros nomes no teu feed.

Você lembrou de todos. Quem eram, quem amavam.

Nesse tempo você já era considerado subversivo. Já teve que começar a dormir todo dia na casa de uma pessoa diferente. Tive medo. Achei que você ia sumir também. Você já não ia mais pra universidade, era um lugar fácil de te pegarem. Uma vez ou outra você dormia lá em casa. Era lá onde você mais ficava quieto, pois sabia que não precisava discursar nem ser símbolo de nada. Não precisava lembrar. Eu entendia a tua dor porque era a dor que eu também sentia.

Quando eles foram lá em casa você não tava. Meu pai tentou falar algo e levou uma coronhada na cabeça. Eu protestei e me levaram. Os uniformes verdes, as botas pretas... Mal sabia eu que aquilo ia ser meu cotidiano. Todo dia acordava, apanhava um pouco, dormia exausto e acordava de novo pra apanhar um pouco mais. Tinha um dia da semana que era pra sentar numa cadeira e levar choque. Outro dia era pra tentar ficar acordado enquanto eles jogavam água fria na sua cabeça. Eu odiava esse dia. Odiava ouvir os gritos dos outros. E odiava ter que me humilhar pra eles. Você percebe que perdeu a dignidade quando se sente feliz porque sonhou que tá morrendo. Vi muita gente chegando, mas pouca indo embora. Eu já tava certo que eles iam me matar, mas me liberaram depois de um tempo. Sete meses, disse o meu pai. Soube que você fez um cabaré aqui fora por causa da minha prisão. Eles tavam putos porque não conseguiam te pegar. Eu nunca disse nada e todo mundo lá dizia pra eu falar o que sabia. As coisas só ficaram piores depois da minha saída. Quer dizer, eu acho que ficaram piores. Meu pai arrumou pra que eu fugisse do país. Não entendo nada do que vejo na televisão, falam numa língua que mal entendo. Aparentemente as coisas aí só pioram, mas aqui eles se preocupam com o país deles.

Não posso me trair na esperança de um dia encontrar meus pais, meus amigos. Ou você. Não posso esperar muita coisa porque me sinto sufocado e o olho enche de lágrima. Ocupo minha vida com o trabalho. Eu sou faxineiro de uma universidade daqui. Os alunos daqui fazem Engenharia, pagam as mesmas disciplinas de Cálculo que a gente teve. Tento me ocupar com o trabalho, mas, às vezes, sonho acordado e acabo pensando na minha família. Penso em você quando te vejo na televisão. Às vezes, penso na minha amiga que perdi. Penso no teu amor que mataram. Penso na ganância deles, na crueldade do mundo e no desperdício da vida. Da minha e da tua. Da dela. De nossos amigos. Dos que sabem. Dos que não. Sei que é desperdício porque lembro da foto que guardo na memória - que luxo ter um celular aqui! - e fico com o coração apertado.

Mas juro que não esqueço.

10/05/2021

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Cálculo

Conta, éramos dois e dois
Percebe o erro do cálculo?
Pois hoje não somos mais pares
O jogo de restar um solitário.

Divide, somos um e três
Percebe o erro do cálculo?
Deslizam os três pelo palco
O jogo de deixar um solitário.

Soma, agora são um e quatro
Percebe o erro do cálculo?
Pelo menos, são dois novos pares
O jogo de excluir um solitário.

Subtrai, não existe mais um solitário
Percebe a mentira do cálculo?
Ainda existe, embora não vejam
O desenlace de um novo jogo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Vocação

Era cedo da manhã, umas cinco horas, e ele descia a rua com pressa. Não estava atrasado, mas andava rápido porque estava feliz e esse era um momento de celebração. Na verdade, a celebração começara uns meses antes quando saiu o resultado do vestibular. Aprovado em Direito, era uma alegria sem tamanho. Não cabia em si. Dona Maria tinha até chorado. Pela primeira vez, o choro não era como o das outras noites, da tristeza de ter perdido José. Era um choro de liberdade.

Ele descia a rua e pensava em como o futuro prometia. O que José teria dito se visse seu irmão indo pro primeiro dia de aula na faculdade? "Cabeça erguida, boy", a voz dele ainda era nítida na memória. "Não deixe que eles te pisem, cabeça erguida". A mãe ainda chorava todas as noites antes de dormir, ele ouvia tudo. Privacidade não existe num barraco. Ela pedia a Deus que José guardasse seu outro menino, mas Emanuel não acreditava. José não era estrela, não era anjo. Só havia sido e não era mais.

Emanuel agora subia a ladeira que levava ao ponto de ônibus e pensou em como tinha sido difícil. Muito esforço, claro, mas muita ajuda também. Tinha vinte e cinco anos e sempre estudou muito. Apesar disso, nunca era suficiente: saía muito atrás dos concorrentes. "Ah, é só se esforçar", diziam. "Mais?", respondia, exasperado. Aquele cursinho gratuito que o governo abriu perto do trabalho ajudou pra caramba, isso sim. Todo dia deixava o sorriso de vendedor da loja de sapatos pra trás e encarava sério os livros. Sabia de sua vocação desde muito cedo porque achava o mundo muito errado. Queria mudar o mundo; os outros riam de sua ingenuidade, mas já estava acostumado com a risada dos outros.

Lembrou-se do dia que estava na quarta série e se deparou com os colegas rindo de algo. Aproximou-se para ver o motivo de tanta risada. Estremeceu quando viu o que estava escrito. Não entendia bem, mas sabia que aquilo machucava. Uns dias antes, a professora pediu pra todos escreverem num pedaço de papel o nome e colocarem o que queriam ser da vida. Depois, juntou todos e colou numa cartolina e deixou à mostra de todos, em cima do quadro-negro. "É pra vocês sempre se lembrarem que vocês podem ser tudo o que quiserem". Ela era doce, mas ele não lembrava o nome dela. Pois bem, um dos colegas havia colado por cima do que Emanuel havia escrito. O resultado: "Emanuel é um macaco sujo". Estremeceu novamente só de lembrar. Nesse dia, ele foi pra casa com o coração miúdo, pequeno mesmo. A mãe ainda não havia chegado do trabalho, levava duas horas da casa da patroa pra chegar ali no morro. Ele sabia que não podia dizer aquilo à mãe, que já sofria demais com as coisas de José. O irmão viu Emanuel chegando e percebeu algo errado só de olhar pra ele.

- Que foi?

- Nada não... - os olhos cheios d'água mentiam.

- Diz logo, Emanuel, deixe de coisa.

Contou a história. Viu o rosto de José ir de uma fúria avassaladora a uma compreensão que só os pretos sabem que têm. É o olhar de quem sabe o peso de ser. José então disse, imponente:

- Emanuel, levante sua cabeça. Cabeça erguida, boy.
E disse algo em seu ouvido. Emanuel olhou pro irmão com dúvida. José apenas assentiu com a cabeça.

No outro dia, Emanuel chegou na escola e foi direto falar com os colegas. Perguntou quem tinha feito aquilo. Um se acusou, confiante, era um moleque branco que não lembrava o nome. Aproximou-se dele e lhe desferiu um soco no rosto. Não disse nada, apenas saiu andando. Esperou que alguém o chamasse na diretoria, mas nunca veio o convite. Também nunca mais ninguém o chamou de macaco.

A ladeira parecia maior do que os outros dias, mas na verdade Emanuel só andava mais devagar. Era tempo de sobra pra chegar no trabalho, então pôs-se a pensar no passado. Lembrou do dia da morte de José. Um dos amigos dele tinha vindo na porta de casa dizer que os polícia tinham matado o irmão. Dona Maria saiu correndo doida, mas quando chegou só tinha um corpo estirado. Enterrou o filho, mas continuou sofrendo ao ver o noticiário matando ele uns dias mais. Era a mãe do traficantezinho, do drogado. Nunca parou de chorar pelo filho, mas o sofrimento dela foi diminuindo um pouco. Tinha que viver pelo outro filho e Emanuel era muito jovem ainda, era sete anos mais novo que José. Lembrou-se do dia em que estava almoçando pra ir pro colégio - já tava no ensino médio, uns quatro anos da morte do irmão - e a mãe disse do nada:

- Ele vendia droga mesmo, Emanuel.

- Eu sei, mãe... - o rosto dele continuou no prato de feijão.

- Mas ele não merecia ter morrido daquele jeito.

Emanuel ficou calado. Então, ela segurou a mão dele e disse com peso na voz:

- Você nunca vai seguir esse caminho. Promete pra mim.

Ele prometeu. E cumpriu. Terminou os estudos e arrumou logo um serviço. Houve um tempo que viu as coisas faltando em casa e pensou, pensou, pensou, mas sempre lembrava da promessa. Toda vez que levava um escracho da polícia por estar andando na rua, lembrava. Quando alguém não queria sentar no seu lado no ônibus, lembrava. Não daria aquele gosto pra eles de ser o preto favelado traficante. Seria advogado, seria bem-sucedido, faria tudo direito. Era esta sua vocação, afinal.

Aproximava-se da parada de ônibus, bastava virar a esquina que chegava ao seu primeiro destino. Quando estava virando, um rapaz passou correndo e esbarrou nele. Emanuel pediu desculpas, mas só registrou o olhar de pânico. Era um menino, tinha uns 14 anos, provavelmente. O garoto continuou correndo, desesperado, e não olhou para trás. Quando Emanuel foi pegar sua pasta que derrubara no chão, deparou-se com um policial que apontava sua arma pra ele. A reação dele foi levantar os braços. 

O tiro o acertou em cheio no peito.

Emanuel caiu no chão e a blusa amarela - aquela blusa que sua mãe tinha lhe dado no Natal - se encheu de vermelho. Ouviu uns gritos, o policial que o acertara soltou um palavrão e parecia nervoso. Emanuel só pensava que não queria morrer. Que não era justo. Viu outro policial se aproximando. Dali do chão, todos pareciam gigantes.

- Capitão, eu me enganei... - o policial tinha voz de fuinha.

- Nem tanto, esse é até parecido com o ladrãozinho lá. - a voz do outro era fria.

- E agora? O que a gente faz? - o policial estava em pânico.

- Pega a arma que o outro deixou cair e coloca na mão desse. Liga pra ambulância depois, esse já era.

"Eu ainda sou", Emanuel pensou. Não queria dar o gosto de morrer ali, mas sentiu muito frio de repente. Pensou na mãe e sabia que ela iria sofrer. A certeza da morte se aproximava e Emanuel sentiu desgosto. Provavelmente, a mãe morreria disso. Não, ele sabia que sim. A morte lhe dava uma certa clarividência. Esperou que a vida lhe passasse diante dos olhos, mas isso o momento não providenciou. Pensou no irmão com nome de santo, mas sabia que nunca mais o veria. Sentiu uma grande solidão e quis chorar, mas não veio lágrima. A única coisa que saía em profusão era o líquido vermelho do seu peito. Ah, a terrível metáfora da redenção que cumpria em si mesmo.

Agora, a dor era lancinante. Emanuel lutava, lutava mais do que das outras vezes. Só que chega aquele ponto em que a morte se impõe. A certeza do final começava a pairar no ar. Um monte de gente havia se aglomerado e ele lamentou ser o centro desse espetáculo. Pensou que não mudaria o mundo e que isso era um grande desperdício. Foi então que, além da clarividência, o momento lhe concedeu iluminação e percebeu o engano que havia cometido. Percebera finalmente sua verdadeira vocação e aquilo foi manifesto em uma palavra que nenhum dos transeuntes entendeu:

- Estatística.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Tua carta

Olá,

Sei que isso vai chegar com atraso e talvez você nem leia. Apesar disso, sinto que devo escrever. Existem coisas que pairam no ar, soltas, e a gente espera que elas surjam, mas o tempo nunca é generoso. O tempo pode ser muitas coisas, mas certamente não é generoso. Espero que você entenda que escrevo por necessidade e não por apego. Talvez tenha um pouco de vaidade, mas toda vaidade há de ser perdoada diante do que é necessário.

Será tarde quando você receber essa carta, mas eu ainda sofro por não ser urgente. Essa pressa tão presente nos outros é uma das coisas que me faz falta e, às vezes, acho que devia desejar isso, mas também percebo que o mundo todo anda descontroladamente muito rápido. Além disso, a urgência exige que eu seja ansioso e você já viu o resultado disso. É catastrófico. Então, que eu seja descansado e te escreva em tempo inoportuno porque o contrário disso é perda e já perdi muito em pouco tempo.

Pode ser que você pense que eu esteja ressentido. Não estou. Se eu escrevo sobre sentimentos, a mágoa não é um deles. Se eu te envio uma carta - que, por sinal, nem chega a ser uma carta já que não há tinta, lápis ou papel, mas sim a intenção e aí me pergunto se as cartas são um amontoado de intenções dispostas em palavras mal organizadas -, é porque penso que nós sobrevivemos ao rancor e podemos ouvir. Eu sempre me ouvi, mas será que você me acompanhou nisso? Eu me escuto muito bem e sei que sou inadequado, mas sei também que não sou cruel.

Esse é um fardo que não carrego.

Pois bem, escrevo porque o tempo é propício, mas também para falar que senti e ainda sinto. Senti muito em pouco tempo e não sei direito o que era. Sou bom com as palavras, mas não sou bom com os sentimentos. Tudo que sinto é desorganizado, inconveniente, e se concentra num conjunto misto de ternura e respeito. Ao contrário de mim,  o sentimento que você tinha era calculado. Era exato, específico e racional. Compartimentado. O que eu tinha larga escala, você mantinha reduzido. E também percebo que eu era um na multidão dos seus amores, enquanto você era a multidão de todo o amor que sentia. E sinto muito por você, mas não por ter sentido tanto.

Sinceramente,

Adeus.