sexta-feira, 10 de maio de 2019

Eu lembro

Meu caro,

Parei para olhar aquela foto de vocês que tanto gosto. "Parei" é modo de dizer, assim como "olhar". Não tem mais imagem pra ver e eu não paro quieto. Só paro quando chego em casa e deito a cabeça no travesseiro. Acho que "sonhei" é mais adequado, mas a língua agora é luxo e não posso me dar à reflexão. Fico deprimido. Saudoso. E saudade é um troço perigoso.

Não lembro de muitas fotos, mas dessa eu lembro. O teu cabelo bagunçado, o sorrisão dela, as árvores atrás, um mói de gente. Eu que tirei a foto, eu lembro da gente no parque. O mundo já começava a ruir, mas a gente não tinha se dado conta ainda. Quer dizer, ela já tinha; nós que não. Éramos dois lesados, mas ela sempre foi esperta. Guardei a foto de vocês no celular e fiquei de passar depois.

Esqueci.

No dia seguinte ela já tinha sumido. Um dia inteiro sumida e ela nem tinha falado nada em casa. Você sabia que ela tinha um medo da gota de sumir. Procurou nos cantos de sempre. Um dia virou um mês. Você já tava barbudo, desgrenhado. A mãe dela já não mais vivia, era uma sombra. As fotos de vocês no feed do Instagram deu lugar apenas às fotos dela com o nome DESAPARECIDA embaixo. Um mês virou seis. Seis, um ano. Outras fotos e outros nomes no teu feed.

Você lembrou de todos. Quem eram, quem amavam.

Nesse tempo você já era considerado subversivo. Já teve que começar a dormir todo dia na casa de uma pessoa diferente. Tive medo. Achei que você ia sumir também. Você já não ia mais pra universidade, era um lugar fácil de te pegarem. Uma vez ou outra você dormia lá em casa. Era lá onde você mais ficava quieto, pois sabia que não precisava discursar nem ser símbolo de nada. Não precisava lembrar. Eu entendia a tua dor porque era a dor que eu também sentia.

Quando eles foram lá em casa você não tava. Meu pai tentou falar algo e levou uma coronhada na cabeça. Eu protestei e me levaram. Os uniformes verdes, as botas pretas... Mal sabia eu que aquilo ia ser meu cotidiano. Todo dia acordava, apanhava um pouco, dormia exausto e acordava de novo pra apanhar um pouco mais. Tinha um dia da semana que era pra sentar numa cadeira e levar choque. Outro dia era pra tentar ficar acordado enquanto eles jogavam água fria na sua cabeça. Eu odiava esse dia. Odiava ouvir os gritos dos outros. E odiava ter que me humilhar pra eles. Você percebe que perdeu a dignidade quando se sente feliz porque sonhou que tá morrendo. Vi muita gente chegando, mas pouca indo embora. Eu já tava certo que eles iam me matar, mas me liberaram depois de um tempo. Sete meses, disse o meu pai. Soube que você fez um cabaré aqui fora por causa da minha prisão. Eles tavam putos porque não conseguiam te pegar. Eu nunca disse nada e todo mundo lá dizia pra eu falar o que sabia. As coisas só ficaram piores depois da minha saída. Quer dizer, eu acho que ficaram piores. Meu pai arrumou pra que eu fugisse do país. Não entendo nada do que vejo na televisão, falam numa língua que mal entendo. Aparentemente as coisas aí só pioram, mas aqui eles se preocupam com o país deles.

Não posso me trair na esperança de um dia encontrar meus pais, meus amigos. Ou você. Não posso esperar muita coisa porque me sinto sufocado e o olho enche de lágrima. Ocupo minha vida com o trabalho. Eu sou faxineiro de uma universidade daqui. Os alunos daqui fazem Engenharia, pagam as mesmas disciplinas de Cálculo que a gente teve. Tento me ocupar com o trabalho, mas, às vezes, sonho acordado e acabo pensando na minha família. Penso em você quando te vejo na televisão. Às vezes, penso na minha amiga que perdi. Penso no teu amor que mataram. Penso na ganância deles, na crueldade do mundo e no desperdício da vida. Da minha e da tua. Da dela. De nossos amigos. Dos que sabem. Dos que não. Sei que é desperdício porque lembro da foto que guardo na memória - que luxo ter um celular aqui! - e fico com o coração apertado.

Mas juro que não esqueço.

10/05/2021

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