terça-feira, 19 de julho de 2016

Coletivo

Pego o ônibus na esperança de encontrar algum lugar para ir sentado. Ledo engano. Sempre cheio esse das sete horas. Um homem fala que o motorista está atrasado mais uma vez. Alguém fala que a culpa é do prefeito, outros dizem que são dos empresários. Vou na porta porque não tem lugar. Rotina. Dona Maria segura a minha mochila e eu agradeço. O homem ainda reclama do atraso do motorista, que ignora a provocação.

Seguimos. Na outra parada, sobe uma moça bonita. Distraída, fones no ouvido. Os homens olham e ela se retrai. Dona Maria solta um muxoxo de desaprovo. “Muita pouca vergonha, parece que nunca nem viram mulher...”, ela olha pra mim e busca aprovação. Assinto, envergonhado, porque eu também olhei. De canto de olho, mas olhei. Cúmplice da cobiça, serei condenado?

O ônibus de vez em quando para e mais pecadores vão subindo. Existem os que bocejam e exalam preguiça. Cheios das nove horas, os vaidosos se olham no reflexo da janela e se arrumam. Pessoas descem do transporte e alguns correm para se sentar, pensando apenas em si. Com quantos pecados se faz uma pessoa? A dúvida pulula na minha mente e nem notei que dona Maria vai descer. Pego a minha mochila e sento. E penso.

Estamos todos pagando nossos pecados. Essa é a absolvição de andar no transporte público: lá fora somos independentes, mas aqui estamos aglutinados. Forçados a conviver, a expor nossa limitação e as nossas loucuras mais íntimas. O homem ainda fala do motorista que atrasou e eu penso se Deus escuta as nossas preces coletivas. Pago o alto dízimo - “essa passagem tá muito cara!”, reclamam -, então me reservo ao direito de ser atendido. 

Não encontro mais a moça. Terá descido? Espero que ainda volte a vê-la... O devaneio da luxúria é o motivo de eu estar aqui hoje. Bem-aventurados os que andam de carro, pois eles serão consolados. Aos pobres, não resta esperança. Só a resignação, a espera, a angústia e precisa esperar de novo porque pobre morre em fila esperando. O homem desce xingando o motorista e eu reflito se acredito em Deus.

O meu destino se aproxima e sinto um vazio. Minha missa dura mais de uma hora e já rezei demais. É tempo de deixar o ônibus para trás, de abandonar essa congregação de ovelhas perdidas que buscam remissão dos seus crimes. Fico para escutar os últimos acordes do hino de despedida. A catraca gira, a porta abre, a mulher grávida entra e os velhos ficam em pé. Perdoem os passageiros pela insensibilidade: eles não sabem o que fazem. Seguem juntos, amontoados, dentro do coletivo. Ônibus que é coletivo de humano.

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